Ética e Compliance Digital na Era do Fake News

 

*Adriana Sforcini Lavrik Esper

 

O homem ao nascer recebe da natureza um hardware, contudo, falta-lhe um bom software para operá-lo. Este software se chama ética, palavra de origem grega (ethos), que significa modo de ser ou caráter. Cabe ao ser humano, durante a sua existência, adotar e se deixar conduzir por este software.

Ética pode ser entendida como a prática diária e constante de reflexão sobre o que vamos fazer e quais os motivos que nos levaram a tomar determinada atitude, visto que a liberdade de escolha e a vulnerabilidade da condição humana são as bases da ética.

A questão ética é debatida desde a Antiguidade e vem se destacando com o passar dos tempos em todos os setores, inclusive no mundo corporativo.

As empresas de sucesso são aquelas que têm uma forte noção de responsabilidade social, fruto do comportamento ético. Ética e responsabilidade social andam de mãos dadas. Não é toa que nossa Constituição Federal elenca em suas cláusulas pétreas que a propriedade atenderá sua função social (art. 5º, XXIII).

Atualmente o único lucro moralmente aceitável é aquele obtido com ética. Empresas éticas subordinam suas atividades e estratégias a uma prévia reflexão ética e procuram tomar decisões de forma socialmente responsável (i.e., cumprindo sua função social).

Um dos pilares da compliance reside na transparência na condução dos negócios, que inclui o compromisso com o principio ético da verdade, base das decisões socialmente responsáveis. O custo da não conformidade com a verdade pode ser grande e trazer danos, muitas vezes irreversíveis.

Quando emitida publicamente uma afirmação contrária à verdade assume uma gravidade particular, exemplos não nos faltam, como o caso da dona de casa Fabiane Maria de Jesus[1], que morreu após ter sido espancada em razão de um boato gerado por uma página em uma rede social.

Notícias falsas não surgiram com as redes sociais. Na Antiga Roma, por exemplo, se disseminavam boatos para louvar uns e denegrir outros. Mas, notícias falsas precisam de uma sociedade disposta a acreditar nelas.

Nietzsche, no século 19, dizia que a verdade e a mentira são construções que decorrem da vida no rebanho e da linguagem que lhe corresponde. O homem do rebanho chama de verdade aquilo que o conserva no rebanho e chama de mentira aquilo que o ameaça ou exclui do rebanho. Platão, que morreu em 348 A.C., em sua Alegoria da Caverna descreve também este medo do homem enxergar a verdade e ser excluído do seu meio.

No mundo conectado de hoje notícias não encontram fronteiras, parodiando Platão, a Caverna foi expandida. Um simples acesso à internet, através de qualquer dispositivo, nos expõe a uma ampla gama de informações provenientes de variadas fontes, confiáveis ou não, com diferentes olhares e propósitos. E cada um vai se ajustando às essas informações conforme a sua realidade em torno, por isso é importante nos educarmos sobre o assunto.

Uma pesquisa do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), concluiu que notícias falsas se espalham 70% mais rápido que as verdadeiras. Uma postagem verdadeira atinge, em média, mil pessoas, a falsa pode atingir 100 mil pessoas. Se for ligada a política o alastramento é 3 vezes mais rápido.

O mundo digital tem facilitado que a desinformação seja divulgada em larga escala e isto tem gerado muitas preocupações. Alguns países (e.g., Alemanha, França, Malásia) estão criando ou aperfeiçoando normativos para coibir o alastramento de fake news. Em 2019 o Brasil editou a Lei 13.834 que pune (inclusive com prisão) a divulgação de fake news com o objetivo de afetar candidatura eleitoral. Atualmente encontra-se em tramitação no Congresso Nacional um Projeto de Lei (PL 2.630/2020), que combate a disseminação de conteúdo falso na internet.

Escolas ao redor do mundo também estão incorporando na formação de seus alunos o conceito de checagem de notícias como forma de combate à desinformação. A Universidade de Cambridge (Reino Unido) participou da elaboração de um jogo educativo on line, o Bad News Game[2], que visa demonstrar os métodos utilizados para espalhar mensagens falsas.

Nesse mundo tecnológico, constantemente em mutação, temos que ficar vigilantes e fazer todo o possível para proteger nossas sociedades e nossas organizações. E várias iniciativas, inclusive de autorregulação, têm se destacado nesse sentido.

Em fevereiro de 2018, um grupo de acadêmicos criou na Califórnia os Princípios de Santa Clara sobre Transparência e Accountability em Moderação de Conteúdo[3], com recomendações para os processos de análise das empresas envolvidas na atividade de moderação de conteúdo em mídias digitais, quando da remoção de conteúdo e/ou suspensão de contas.

A ética precisa estar na base da transformação digital e será fundamental para a sobrevivência das empresas. Com esse espírito, algumas empresas estão se reorganizando para adotar estratégias mais éticas digitalmente, incluindo a criação de comitês internos e parcerias com universidades para auxiliá-las na análise sobre a questão da aplicação da ética na tecnologia. E não é a toa, pois gigantes do mundo digital, como Google e Facebook, já perderam milhões de dólares em valor de mercado após anúncio que seriam investigadas por práticas desleais.

E a própria rede está se encarregando de denunciar empresas que faltam com o compromisso da verdade no meio digital. Grupos têm se formado nas redes sociais com o intuito de combater discursos de ódio e notícias falsas. Um deles é o Sleeping Giants[4], que visa persuadir empresas a removerem suas propagandas das mídias que publicam notícias falsas. O coletivo iniciou suas atividades no Brasil em maio de 2020 e já denunciou diversos portais que divulgavam fake news, bem como empresas que costumavam anunciar nestas mídias.

A responsabilidade frente à verdade não se limita a não dizer ou repetir mentiras. Também tem a ver com não se calar quando uma injustiça é cometida. Marcus Tullius Cícero (106-43 A.C.) já dizia: “a verdade se corrompe tanto com a mentira quanto com o silêncio”.

Ética digital significa confiança do usuário e o mercado também ficará de olho nesta boa prática. A tecnologia disruptiva nos trouxe também inovações no campo do estudo da ética, incluindo novas disciplinas, como a Data Science Ethics, que começam a despontar mundo a fora. E isso é muito bom.

Precisamos sempre e cada vez mais falar sobre ética, somente assim o software que conduz nosso hardware estará sempre atualizado e manterá a sua excelência.

*Adriana Sforcini Lavrik Esper, é advogada no escritório Miguel Silva & Yamashita e professora de Ética e Compliance Digital

[1] https://veja.abril.com.br/especiais/linchamento-guaruja-fake-news-boato/, acessado em julho/2020

[2] Bad News Game, in: https://www.aboutbadnews.com/social-impact-game/, acessado em julho/2020.

 

[3] Santa Clara Principles, in: https://santaclaraprinciples.org/cfp/, acessado em julho/2020.

 

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/Sleeping_Giants, acessado em julho/2020

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